Monday, October 30, 2006

Cálice

Era o começo da década de 80 e ele já passava dos quarenta anos. Acordava bem cedo e ouvia as notícias do Repórter Esso. Fazia muito frio naquela pequena cidade. No país, ainda reinava a ditadura militar. Já não era tão rigorosa quanto outrora, mas para ele isso fazia pouca diferença. Era tão pobre, vivia numa cidade tão pequena e tão pouco desenvolvida, que os tempos de repressão tiveram pouco significado para ele. Não o atingira a censura, o toque de recolher, a violência dos militares, a rigidez das regras por eles impostas.
Sentado ao lado do rádio, após a despedida da conhecida voz que lhe transmitia as notícias que quase não o atingiam, uma música chama sua atenção. Nela o refrão repetia uma frase que ficou conhecida como apelo de resistência a dureza daqueles tempos de censura. “Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue.”
Aquele pobre homem era tão simples e tão ignorante, que era incapaz de entender a metáfora brilhante que ouvia. Era capaz de entender o significado político daquela canção. Mas isso não o impediu de sentir a força dela. Talvez jamais pudesse entender o que aquele homem realmente quis dizer, mas certamente algo o tocou profundamente naquele momento.
Aquele homem não fora vítima da repressão política. Mas fora vítima da pior força repressora que nos aflige até hoje. Fora vítima de um sistema que privilegia a poucos escolhidos. Que não mata os corpos como os militares fizeram, mas mata os sonhos do homem e o faz seguir como um corpo ferramenta sem vida. Que não censura as palavras de protesto e não impõe regras rigorosas, mas censura as conquistas do homem censurando suas oportunidades reais. Aprisiona o homem dentro de sua própria liberdade.
Aquele pobre homem, alcoólatra e infeliz, ouvia aquelas palavras que entravam cortando sua alma. Para ele também era difícil beber daquela bebida amarga que era sua vida, tragar a dor, engolir a labuta. Ele, que nem era filho da santa. Como era difícil para ele acordar calado, ele que se danava noite e dia. Queria ser escutado, mas sequer sabia o que queria dizer. Tinha um grito preso na garganta, mas não sabia explicar o que sentia e seus olhos derramavam a tristeza por não ter feito nada melhor de sua própria vida.
A casa estava silenciosa e esse silêncio o mantinha atento. Olhava a pequena criança que dormia, uma ponta de esperança que ainda se mantinha enquanto os outros filhos já crescidos já seguiam seus próprios caminhos. Temia serem igual ao dele. Pensava poder fazer um pouco diferente, dar a ela um pouco o carinho que jamais recebera do pai que nunca teve, que jamais soube como dar aos outros.
Pai, afasta de mim esse cálice e dá um pouco de sentido a essa minha vida.
Esse pileque homérico no mundo, do que adianta ter boa vontade, mesmo calado o peito resta a cuca dos bêbados do centro da cidade a perguntar porque tanta diferença, porque tanta dificuldade.
Quero perder de vez tua cabeça, minha cabeça perder teu juízo. De que ele me vale, se já perdi os belos anos de minha vida, se já perdi minha família, se já me censuram a felicidade, ele pensava. Sofria calado e sozinho.
E a pequena criança jamais esqueceu aquelas lágrimas do pai, e jurou jamais acordar calada, e não aceitar a vida como um fato consumado.

Devaneios a respeito da água

Para falar a respeito da água é preciso tornar claro a respeito de qual água estamos falando e que tipo de sensação esta água nos causa. Ao falar de sensação, me refiro tanto ao sentido visual, imaginário, e psicológico, quanto ao sentido físico. Neste momento em particular, quando me encontro cercada por brutas paredes, que me impedem de ao menos sentir a brisa que vêm do mar que fica logo ali ao lado, e que, faz com que a única água com a qual posso estabelecer algum contato visual ou físico seja aquela pertencente a uma pequena porção encerrada em um esguio copo transparente, necessito recorrer aos arquivos da memória para recordar e tentar classificar tais sensações.
A primeira grande diferença entre as águas, da qual sinto agora um profundo desejo de devanear a respeito, é a diferença que vejo entre o mar e o rio. Esse desejo foi desencadeado por uma associação, feita por Bachelard[1], entre o mar e o infinito. Sinto que essa associação findou qualquer possível conflito interno sobre esse assunto e racionalizou os sentimentos de alguém que viveu grande parte da vida às margens de um rio, e hoje vive praticamente à beira-mar.
Ao recorrer à memória sobre as sensações causadas pelo mar, emerge a solidão profunda, a sensação de nada poder mudar (ao menos a curto prazo), de nenhum lugar para ir. O mar vai além de onde meu olhar pode chegar, mas isso não me dá a sensação de poder ir adiante, pois meus olhos não o vêm correr para lá. De toda aquela água, parece que só esta que está pertinho de mim pode se mover. Vai e vem, porém nunca pára de fazer a mesma coisa. Como um sofrimento eterno e monótono. Parece que não se move ao longe porque fica cansada. Quando me imagino lá no meio do mar, invade uma sensação de impotência diante de uma imensidão que lentamente me leva a algum lugar que não posso imaginar qual é. Tão vagarosamente que me aflige a possibilidade de nunca chegar lá.
Volto à praia, à brisa ou ao vento triste que me traz tanta melancolia (como na gravura de Dürer[2]), e vejo novamente a água que espera. Eis o mar que espera o rio que vem de tão longe. O rio, ao contrário do mar, jamais fica parado. O rio cresce e segue sempre crescendo, vencendo obstáculos, arrastando coisas e pessoas. O rio me fala da vida e da morte, dos erros e acertos, do fluxo constante da vida que nunca pára, do ser que vai crescendo ao longo da vida, buscando o melhor caminho, e que não sabe exatamente por onde vai passar, mas sabe que por fim chegará ao mar, onde termina seu caminho. Lembra o ciclo da vida e a morte inevitável.
O rio tem tantas coisas em suas margens, o mar só tem areia na beira. O rio é doce e refrescante, o mar deixa a gente salgada e grudenta, procurando por água doce, para nos livrar do que não queremos grudado no corpo. Mas, seja doce ou salgada, a água, de uma forma ou de outra, sempre nos alivia quando nos envolve o corpo. Por mais feroz que em alguns momentos ela possa ser, a água sempre nos proporciona uma sensação de plenitude quando nos abraça. Ela leva embora o que nos desagrada, ao mesmo tempo que nos penetra o que possui de essencial a esse corpo tão cheio de água. É como se nossa alma fosse simbolicamente lavada. Quando estou dentro da água, quando a água me enlaça e lambe o corpo ( e aqui vale o chuveiro, a piscina, a banheira, o rio, o mar, a chuva, e até a mangueira), sinto que as portas se abrem dentro da minha cabeça. O consciente e o inconsciente perdem as fronteiras. Os arquétipos se comunicam e anima perde a timidez. Quanto mais tempo permaneço sob o toque da água, mais coisas ela me conta a respeito de mim mesma e da vida. Fala sobre as coisas cujas quais ela tentou me avisar e eu fingi que não ouvi. Aconselha-me, clareia minha vista e soluciona meus conflitos.
A água está fora e dentro de nós. No sentido físico e simbólico. Eu, particularmente, tenho tanta água dentro de mim que facilmente transbordo e ao dormir ela constantemente invade meus sonhos. Desde pequena, vivo com os olhos molhados. Minha mãe dizia que vivia a lacrimejar. Meus olhos às vezes parecem vazar à toa toda essa água que está dentro de mim. Acho que ás vezes falta espaço para ela no corpo. Houve dias inteiros a vazar e vazar, até eu cansar e dormir, ou encontrar alguém que me fizesse chorar de tanto rir. Pois meus olhos não transbordam apenas quando estou triste. Costumo chorar de rir. Vou de um extremo ao outro em segundos, assim como uma criança que logo esquece o que lhe levou ao pranto. Mas sempre com lagrimas aos olhos. Quando fico “seca” por muito tempo é porque algo está errado. Sinto-me desidratada, sem esperanças, infértil, insensível. Chorar pra mim não dói, salva. O que me angustia mais é secar. Há que associe o choro à fraqueza, que é uma idéia que me recuso a aceitar. Essa associação me parece contra a natureza das coisas, dos seres da vida. Não creio que seja sequer razoável conter esse rio que carregamos dentro de nós. É como tentar conter a fonte de nossas emoções, o que indubitavelmente em algum momento causará uma explosão interna, visto que é difícil conter um rio por muito tempo. É impossível impedi-lhe de fazer a sua trajetória natural que o leva ao mar.

[1] Bachelard, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria.
[2] Dürer- A Melancolia I, 1514

Friday, October 20, 2006

Conversando Comigo


Zé Roberto : Como já dizia o velho jogador de Truco; Lugar de cagão é no baralho!!!

Sarinha: Nem vem de truque malandro. Desta vez eu pago pra ver!

O olhar do escorpião

Algumas circunstancias especiais essa semana me fizeram lembrar dessa foto e do comentário que minha amiga Manú, que anda perdida ( ou perfeitamente encontrada) lá pelas bandas do Recife, deixou no antigo blog que já não atualizo mais, logo abaixo dela.





Sarita, Fica aí um Quintaninha prá dormir bem... "Amigos, não consultem os relógios quando um dia me for de vossas vidas... Porque o tempo é a invenção da morte: não o conhece a vida -a verdadeira- em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira". Passatempo bom e enlouquecedor esse blogger...e esse olhar de escorpião nas fotos???!! Manu.

e ouso complementar essa salada com uma música do Chico ...(sei q tinha dito q não ia postar masi músicas inteiras, mas eu disse só pra mim então tá...)

Consta nos astros

Nos signos

Nos búzios

Eu li num anúncio

Eu vi no espelho

Tá lá no evangelho

Garantem os orixás

Serás o meu amor Serás a minha paz

Consta nos autos

Nas bulas

Nos dogmas

Eu fiz uma tese

Eu li num tratado

Está computado

Nos dados oficiais

Serás o meu amor

Serás a minha paz mas se a ciência provar o contrário

E se o calendário nos contrariar

Mas se o destino insistir

Em nos separar

Danem-se

Os astros

Os autos

Os signos

Os dogmas

Os búzios

As bulas

Anúncios

Tratados

Ciganas

Projetos

Profetas

Sinopses

Espelhos

Conselhos

Se dane o evangelho

E todos os orixás

Serás o meu amor

Serás, amor, a minha paz

Consta na pauta No Karma Na carne Passou na novela Está no seguro Pixaram no muro Mandei fazer um cartaz Serás o meu amor Serás a minha paz Consta nos mapas Nos lábios Nos lápis Consta nos Ovnis No Pravda Na vodca