Monday, February 04, 2008

A Falência da Crítica de Arte

Falando essa semana com meu grande amigo e mestre Adelar Bazzanella, a respeito dos rumos tomados pela crítica de arte, recebi dele esse texto, que vai de encontro ao que tenho pensado a respeito há algum tempo.

Após ler o texto, fui dar uma espiada no blog de seu autor, Luciano Trigo, o Máquina de Escrever, onde encontrei mais um monte de coisas bem interessantes. Vale a pena a visita.

Segue o texto:

A falência da crítica de arte
[http://www.a-desk.org/07/imagenes/greenberg.jpg]
É mais ou menos consensual, mesmo entre os próprios artistas, que a crítica de arte perdeu relevância e poder. Isso não acontece só no Brasil: nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França o tema já foi assunto de acalorados debates. É inimaginável o surgimento hoje de um Clement Greenberg (foto) ou um Harold Rosenberg, por exemplo, que exerceram uma influência decisiva no meio artítisco americano nas décadas de 50 a 70; ou, no Brasil, de um Mario Pedrosa, que ajudou a construir o nosso discurso crítico sobre o Modernismo. (Mesmo assim, Greenberg ainda é o crítico por antonomásia, o nome que se associa imediatamente à figura do crítico de arte, já que a produção contemporânea não gerou nenhum crítico relevante - Arthur Danto está comprometido demais com a tese do "fim da arte" para assumir esse papel).

Hoje, os próprios críticos remanescentes admitem que seu papel deixou de ser o de juízes para ser o de espectadores. E para quem sobrou a função de juiz? Ao curador. Os críticos trocaram o papel de mediação ativa que tiveram no passado pelo papel passivo de comentadores neutros, na periferia do sistema da arte. Com poucas exceções, isso se manifesta tanto na imprensa quanto na produção acadêmica, sendo que esta tem um agravante: o obscurantismo da linguagem, que dá um verniz de sofisticação e de inacessibilidade à falta de rigor e a incapacidade de se expressar claramente.

A verdadeira crítica incomoda: imaginem se um crítico tivesse hoje poder para desancar as imposturas de Damien Hirst: o que seria dos marchands e colecionadores que levaram suas obras a cotações estratosféricas? Nas medida em que a arte se sofisticou como investimento especulativo e dinheiro de verdade começou a fluir, ela não poderia estar mais sujeita a opiniões de especialistas que não estivessem comprometidos com o mercado, daí o esvaziamento estratégico da figura do crítico.

Os próprios interessados na valorização especulativa da arte roubaram para si o papel de identificar – ou simplesmente designar – novas tendências, novos nomes, novas obras. Ou seja: a pessoa que vende os ingressos para a exposição é a mesma que garante a sua qualidade, o que tem implicações óbvias. Além disso, os agentes do sistema da arte passam boa parte do tempo viajando (existem mais de 200 bienais no mundo), coisa que poquíssimos críticos têm condições de fazer - e isso se torna mais um pretexto para o curador roubar para si o papel da crítica. E quem contesta é desinformado, precisa viajar mais etc.


Chegamos num ponto em que, nos Estados Unidos, esses agentes do sistema visitam regularmente as exposições das escolas de arte, para eleger s gênios do futuro antes mesmo de eles se graduarem. Nesse contexto, um dos fundamentos da atividade crítica – a descoberta dos novos artistas e o estímulo à consolidação de suas carreiras – foi eliminado. Ou seja, o crítico não tem mais o poder de criar nem de destruir uma reputação – e, para o mercado, é ótimo que seja assim.

A crítica só persiste como encenação: o vazio de significados dos textos críticos reflete o vazio de importância dos próprios críticos. Basicamente, a atividade só sobrevive com a função de chancelar intelectual para uma produção determinada pelas redes do mercado: da mesma forma que um currículo de exposições no exterior, um corpo de textos elogiosos ajuda a conferir respeitabilidade às novas estrelas junto aos museus, colecionadores e o público em geral.

Alguém precisa escrever esses textos, é claro. E, como aparecer assinando textos que terão circulação internacional faz bem para o ego, não falta quem se disponha a escrever por encomenda, seja entre jornalistas, seja professores de História da Arte, duas profissões, como se sabe, mal remuneradas. O atrativo do circuito social da arte, com suas festas e rituais próprios, também tem seu peso, naturalmente. Para o crítico, como para o artista, é mais importante hoje a rede de relacionamentos e a cumplicidade com as regras do jogo do que o conhecimento técnico das antigas regras estéticas de seu ofício. Uns e outros refletem (no sentido de espelhar, não de pensar) acriticamente a mercantilização da esfera artística.

Além disso, perdeu-se o entendimento da crítica como um gênero literário. No passado esperava-se que um crítico soubesse escrever bem, que tivesse um estilo próprio e que fosse capaz de persuadir o leitor a acreditar na sua interpretação da obra analisada – e de fazê-lo refletir sobre o que vê. Não é casual que tantos críticos tenham sido também escritores, bastando citar Baudelaire. Hoje o crítico não está preocupado em atingir uma grande audiência, nem escreve mais para o leitor, mas para seus pares e para os outros agentes do sistema da arte – ou do sistema acadêmico, no caso dos textos universitários – que, no Brasil, nunca se caracterizaram pela clareza.

[http://www.artnet.com/magazine/features/saltz/Images/saltz10-2-4.jpg]

Na América, o crítico "conservador" (rótulo sempre aplicado com sentido pejorativo, e não apenas nas artes; empregando-o, um artista jovem que não sabe nada da vida fica à vontade para ignorar tudo o que tem a dizer um crítico como Robert Hughes, por exemplo, ou Ferreira Gullar - um e outro, como se sabe, reacionários e conservadores) Roger Kimball formulou isso da seguinte maneira: os críticos foram para a cama com a ideologia pós-moderna. Só assim é compreensível que eles legitimem obras tão diferentes como um tubarão cortado ao meio de Damien Hirst e as esculturas de chocolate (foto acima: cubos de uma tonelada, roídos nas bordas pela própria artista) de Janine Antoni, para só citar dois exemplos.


Para isso, a crítica precisa adotar critérios tão heterogêneos e disparatados quando as próprias obras de arte contemporâneas - ou copiar esses critérios dos press-releases das galerias e museus. Isso também ajuda e entender a resistência dos críticos a opinar, a ter uma atitude assertiva, a declarar se gostam ou não de uma obra, se ela é boa ou ruim. Apático e descafeinado, crítico passou a duvidar da própria autoridade - outra atitude tipicamente pós-moderna, e o próprio conceito de "qualidade" perdeu sua legitimidade, a partir dos anos 80. Assim o crítico se tornou um mero veículo para idéias do artista sobre seu próprio trabalho. Fazer um jugamento de valor seria reforçar antiquadas hierarquias de poder simbólico, é claro.

Por fim, até o Modernismo, a arte estava indo para algum lugar; foi assim que Clement Greenberg pôde, tendo ou não razão, interpretar a arte moderna como um processo histórico cuja lógica interna desembocou no expressionismo abstrato - e coerentemente, a questionar a "artisticidade" dos ready-mades de Marcel Duchamp e das paródias da Pop Art. Com o decreto pós-moderno do fim das grandes narrativas, os artistas perderam essa ambição de abrangência e passaram a se movimentar de forma errática, seguindo os fluxos do mercado com seus comentários neutros e modestos, caso a caso. Com isso se dissolveu a base para qualquer interpretação consistente da arte contemporânea. Em que valores se pode basear o julgamento de um cubo de chocolate ou de uma mesa de pingue-pongue coberta de cascas de ovo?

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