Tuesday, March 04, 2008

Sobre o Vinho...

Profundas alegrias do vinho, quem não vos conheceu? Todos os que já tiveram um remorso a apaziguar ou uma recordação a evocar, uma dor para afogar ou um castelo no ar para erguer, vos invocaram, a vós, deus misterioso escondido nas fibras da vinha. Como são belos os fulgores do vinho, iluminados pelo sol interior! Como é verdadeira e excitante esta segunda juventude que o homem oferece a si próprio! Mas como são tanta vez redutoras e fulminantes as suas voluptuosidades e enervantes os seus encantos. E contudo, dizei-me, de dentro da vossa alma e da vossa consciência, vós que sois juízes, legisladores e cidadãos do mundo, a quem a ventura faz mais delicados e para quem a fortuna torna fáceis a virtude e a saúde, dizei-me qual de vós terá a coragem desumana de condenar um homem que vai beber à fonte da genialidade?

Além do mais, o vinho nem sempre é o terrível lutador seguro da sua vitória que jura não observar dó nem piedade. O vinho é parecido com o homem: nunca se saberá até que ponto se pode estimá-lo ou desprezá-lo, amá-lo ou odiá-lo, nem de quantos actos sublimes ou perversidades monstruosas ele é capaz. Não sejamos, pois, mais cruéis em relação a ele do que em relação a nós próprios e tratemo-lo como nosso igual.

Haverá certamente quem me ache demasiado indulgente. “Você está a desculpar a bebida, a idealizar a devassidão!”. Admito que, dadas as vantagens, não tenho coragem para indicar pontos fracos. Como já deixei dito, o vinho assemelha-se muito ao homem, cheguei mesmo a afirmar que os seus crimes são comparáveis às suas virtudes. Poderei ser mais explícito do que isto? Ainda assim, ocorre-me uma outra ideia. Se o vinho deixasse de ser produzido pelos homens, estou em crer que surgiria um vazio na saúde e no intelecto do planeta, um ausência e um erro mais terríveis do que todos os excessos e comportamentos associados ao vinho. Não é razoável pensar que as pessoas que nunca bebem vinho, por ingenuidade ou por convicção, são imbecis ou hipócritas? Imbecis no sentido de gente que não conhece a humanidade e a natureza, tal como aqueles artistas que desdenham os meios tradicionais da arte ou os operários que blasfemam contra as máquinas. E hipócritas como esses glutões vergonhosos que apregoam a sobriedade mas bebem às escondidas de garrafas que guardam muito bem guardadas. Um homem que só bebe água está certamente a esconder um segredo qualquer aos seus semelhantes.


CHARLES BAUDELAIRE-Do Vinho e do Haxixe -

1 Comments:

Blogger Guilherme Lima said...

Difícil mesmo resistir a uma taça de vinho e a dormência do haxixe. Do segundo já não sinto vontade de apreciar, mas do primeiro ainda sinto falta.

10:53 AM  

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