Monday, October 30, 2006

Devaneios a respeito da água

Para falar a respeito da água é preciso tornar claro a respeito de qual água estamos falando e que tipo de sensação esta água nos causa. Ao falar de sensação, me refiro tanto ao sentido visual, imaginário, e psicológico, quanto ao sentido físico. Neste momento em particular, quando me encontro cercada por brutas paredes, que me impedem de ao menos sentir a brisa que vêm do mar que fica logo ali ao lado, e que, faz com que a única água com a qual posso estabelecer algum contato visual ou físico seja aquela pertencente a uma pequena porção encerrada em um esguio copo transparente, necessito recorrer aos arquivos da memória para recordar e tentar classificar tais sensações.
A primeira grande diferença entre as águas, da qual sinto agora um profundo desejo de devanear a respeito, é a diferença que vejo entre o mar e o rio. Esse desejo foi desencadeado por uma associação, feita por Bachelard[1], entre o mar e o infinito. Sinto que essa associação findou qualquer possível conflito interno sobre esse assunto e racionalizou os sentimentos de alguém que viveu grande parte da vida às margens de um rio, e hoje vive praticamente à beira-mar.
Ao recorrer à memória sobre as sensações causadas pelo mar, emerge a solidão profunda, a sensação de nada poder mudar (ao menos a curto prazo), de nenhum lugar para ir. O mar vai além de onde meu olhar pode chegar, mas isso não me dá a sensação de poder ir adiante, pois meus olhos não o vêm correr para lá. De toda aquela água, parece que só esta que está pertinho de mim pode se mover. Vai e vem, porém nunca pára de fazer a mesma coisa. Como um sofrimento eterno e monótono. Parece que não se move ao longe porque fica cansada. Quando me imagino lá no meio do mar, invade uma sensação de impotência diante de uma imensidão que lentamente me leva a algum lugar que não posso imaginar qual é. Tão vagarosamente que me aflige a possibilidade de nunca chegar lá.
Volto à praia, à brisa ou ao vento triste que me traz tanta melancolia (como na gravura de Dürer[2]), e vejo novamente a água que espera. Eis o mar que espera o rio que vem de tão longe. O rio, ao contrário do mar, jamais fica parado. O rio cresce e segue sempre crescendo, vencendo obstáculos, arrastando coisas e pessoas. O rio me fala da vida e da morte, dos erros e acertos, do fluxo constante da vida que nunca pára, do ser que vai crescendo ao longo da vida, buscando o melhor caminho, e que não sabe exatamente por onde vai passar, mas sabe que por fim chegará ao mar, onde termina seu caminho. Lembra o ciclo da vida e a morte inevitável.
O rio tem tantas coisas em suas margens, o mar só tem areia na beira. O rio é doce e refrescante, o mar deixa a gente salgada e grudenta, procurando por água doce, para nos livrar do que não queremos grudado no corpo. Mas, seja doce ou salgada, a água, de uma forma ou de outra, sempre nos alivia quando nos envolve o corpo. Por mais feroz que em alguns momentos ela possa ser, a água sempre nos proporciona uma sensação de plenitude quando nos abraça. Ela leva embora o que nos desagrada, ao mesmo tempo que nos penetra o que possui de essencial a esse corpo tão cheio de água. É como se nossa alma fosse simbolicamente lavada. Quando estou dentro da água, quando a água me enlaça e lambe o corpo ( e aqui vale o chuveiro, a piscina, a banheira, o rio, o mar, a chuva, e até a mangueira), sinto que as portas se abrem dentro da minha cabeça. O consciente e o inconsciente perdem as fronteiras. Os arquétipos se comunicam e anima perde a timidez. Quanto mais tempo permaneço sob o toque da água, mais coisas ela me conta a respeito de mim mesma e da vida. Fala sobre as coisas cujas quais ela tentou me avisar e eu fingi que não ouvi. Aconselha-me, clareia minha vista e soluciona meus conflitos.
A água está fora e dentro de nós. No sentido físico e simbólico. Eu, particularmente, tenho tanta água dentro de mim que facilmente transbordo e ao dormir ela constantemente invade meus sonhos. Desde pequena, vivo com os olhos molhados. Minha mãe dizia que vivia a lacrimejar. Meus olhos às vezes parecem vazar à toa toda essa água que está dentro de mim. Acho que ás vezes falta espaço para ela no corpo. Houve dias inteiros a vazar e vazar, até eu cansar e dormir, ou encontrar alguém que me fizesse chorar de tanto rir. Pois meus olhos não transbordam apenas quando estou triste. Costumo chorar de rir. Vou de um extremo ao outro em segundos, assim como uma criança que logo esquece o que lhe levou ao pranto. Mas sempre com lagrimas aos olhos. Quando fico “seca” por muito tempo é porque algo está errado. Sinto-me desidratada, sem esperanças, infértil, insensível. Chorar pra mim não dói, salva. O que me angustia mais é secar. Há que associe o choro à fraqueza, que é uma idéia que me recuso a aceitar. Essa associação me parece contra a natureza das coisas, dos seres da vida. Não creio que seja sequer razoável conter esse rio que carregamos dentro de nós. É como tentar conter a fonte de nossas emoções, o que indubitavelmente em algum momento causará uma explosão interna, visto que é difícil conter um rio por muito tempo. É impossível impedi-lhe de fazer a sua trajetória natural que o leva ao mar.

[1] Bachelard, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria.
[2] Dürer- A Melancolia I, 1514