Sunday, December 16, 2007

Da Estagnação

Numa dessas minhas crises de estagnação, de completa dificuldade de articular os pensamentos e tranformá-los em textos minimamente coerentes e interessantes, numa dessas minhas angústias particulares que me têm sido tão frequentes nos últimos anos, tive um momento em particular que merece ser aqui citado.

Talvez isso explique, em partes, porque eu desapareço de vez em quando. Não que eu realmente acredite que explicações nesses casos sejam necessárias, ou que venham a convencer alguém de fato. Para mim isso já está além do alcance, já virou metafísica. Mas esse momento, essa explicação em especial, só merece atenção porque traz à tona a minha forte relação com Fernando Pessoa, que é algo que faz tão parte de mim como meus cabelos ou meus cravos no nariz. Existe, é fato e não tem jeito.

Nesse dia que descrevo em particular, depois de uma noite não muito bem dormida devidoa fatores externos como a falta de cobertor ( que é uma das poucas coisas capazes de impedir-me de cair em sono porfundo), acordei com a alma em desassossego total. Por sorte, olho trinado ou inspiração, o primeiro título entre os tantos livros que estavam à minha volta naquele momento a me chamar a atenção foi justamente o Livro do Dessossego, de Bernardo Campos ( o guardador de livros) - outro heterônimo do Pessoa.

Uma página havia sido marcada, não por mim, e também não tenho idéia de quem seja, mas chego a desconfiar que, dormindo ao meu lado, ou observando-me ao sono, fora o próprio Pessoa que o fizera, visto que o conteúdo parecia sair de dentro de mim e não o contrário, que é o comum ao lermos algo novo. Segue o trecho, para o deleite de todos:


[126]
Tenho grandes estagnações. Não é que, como toda a gente, esteja dias sobre dias para responder num postal à carta urgente que me escreveram. Não é que, como ninguém, adie indefinidamente o fácil que me é útil, ou o útil que me é agradável. Há mais sutileza na minha desinteligência comigo. Estagno na mesma alma. Dá-se em mim uma suspensão da vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura magnos dias; só a vida vegetativa da alma – a palavra, o gesto, o hábito – me exprimem eu para os outros, e, através deles, para mim.
Nesses períodos da sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer. Não sei escrever mais que algarismos, ou riscos. Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira. Não posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas palavras, os meus atos certos, não fossem mais que uma respiração periférica, instinto rítmico de um organismo qualquer.
Assim se passam dias sobre dias, nem sei dizer quanto da minha vida, se somasse, se não haveria passado assim. Às vezes ocorre-me que, quando dispo esta paragem de mim, talvez não esteja na nudez que suponho, e haja ainda vestes impalpáveis a cobrir a eterna ausência da minha alma verdadeira; ocorre-me que pensar, sentir, querer também podem ser estagnações, perante um mais íntimo pensar, um sentir mais meu, uma vontade perdida algures no labirinto do que realmente sou. Seja como for deixo que seja. E ao deus, ou aos deuses, que haja, largo da mão o que sou, conforme a sorte manda e o acaso faz, fiel a um compromisso esquecido.